I. Introdução.

 

CPI, ou Comissão Parlamentar de Inquérito, como o próprio nome indica, vem a ser o órgão criado por uma Casa Legislativa para apurar fatos que perturbem a normalidade da vida constitucional, mostrando-se, pois, de interesse público o seu conhecimento mais completo, para permitir seja a modificação das normas legais pertinentes ao fato, seja a punição dos seus infratores, ou ambas essas coisas, tudo com vistas a impedir a repetição de tais fatos e a permitir a restauração daquela normalidade.

 

No plano da União, em que o Legislativo se concentra no Congresso Nacional, composto por duas Casas, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, a designação CPI se ajusta a esse órgão de investigação parlamentar se e quando criado e integrado por membros de apenas uma dessas Casas, Câmara ou Senado, reservando-se a denominação CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) para o órgão de investigação criado e integrado por membros das duas Casas do Congresso, Câmara e Senado.

 

Em tudo o mais, CPI e CPMI se identificam, sendo uma só a fonte normativa primária de ambas, ou seja, a Constituição Federal:

 

“Artigo 58. As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciárias, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço dos seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.”

 

Neste estudo o foco estará no funcionamento da CPI.

 

II. Luta dos Poderes.

 

O enfoque pelo qual acima se optou, isto e, o do funcionamento do órgão investigador parlamentar e não o da sua pura e simples organização, vale dizer, o da sua dinâmica e não o da sua estática, exige que se tome em consideração a luta em que se empenham os Poderes do Estado, em especial o Executivo. Luta que poderia ser interpretada como algo saudável, se vista à luz do controle recíproco deles entre si, controle que, como tal, estaria no cerne mesmo da técnica política da divisão dos Poderes estatais, tudo a permitir, enfim, o gozo da Liberdade pelo corpo social. Não é bem dessa luta que se trata aqui e agora, mas de outra, mais sub-reptícia, como se verá.

 

É que labora em equivoco aquele que porventura veja na vitória da Sociedade representada no Parlamento da Inglaterra em 1689, no Congresso dos Estados Unidos da América em 1776 e no Parlamento da Franca em 1789, na luta contra o Monarca Absoluto, como vitória definitiva. Ao contrário, basta um olhar mais atento sobre o cenário político que se seguiu para se convencer de que em verdade essa luta propriamente ainda não acabou, ou até mesmo que ela nunca deixou de existir, que ela, sim, apenas assumiu novas formas de combate.

 

E isso porque o Executivo, descendente direto dos reis, aos quais passou a substituir, jamais desistiu da primazia da sua autoridade sobre quaisquer outras.

 

Tome-se como exemplo o que se passou com a CPI.

 

Em Franca, as Constituições timbram em não tratar expressamente da investigação parlamentar, mas, admitida que o foi por outras vias legais, logo se adotou regra a exigir perfeita indicação dos fatos a serem investigados sob pena de a investigação não prevalecer. E outra mais, pela qual sua investigação não prevaleceria se e quando já houvesse processo judicial instaurado sobre os fatos nela mencionados. E ainda: regra a fixar prazo de quatro meses para a sua instauração e conclusão; regra a impor sigilo absoluto aos membros da comissão investigadora por grande lapso de tempo.[1]

 

Na Alemanha, logo que se tornou viável a investigação parlamentar, criada que fosse alguma comissão para tanto, o governo agia em três tempos: primeiro, criando outra, com a mesma finalidade, e indicando para ela, desde logo, elementos de sua confiança; segundo, diligenciando no sentido de o Parlamento também fazer indicação de membros seus para­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­ Integrá-la; terceiro, exercendo influência sobre tais membros para agirem de conformidade com os interesses governamentais.[2]

 

Na Itália também a investigação tem limites muito estreitos, pois que via de regra hão de concluir por recomendações ao governo.[3]

 

No Brasil, a instauração de investigação parlamentar foi admitida expressamente pela Constituição de 1934, que dispunha no sentido de que esta ocorreria “sempre” que o requeresse um terço dos membros do Legislativo, no que foi acompanhada pela de 1946, pela de 1967/1969 e pela atual, de 1988. Com referência à Constituição de 1967/1969, cumpre notar que, suprimido que foi do seu texto o advérbio “sempre”, disso se valeu certamente o governo para exigir que a investigação parlamentar somente fosse instaurada se, ademais de subscrito pela terça parte dos membros da Casa Legislativa, o requerimento fosse aprovado pela sua maioria. Isso, na verdade, fazia o dito por não dito na Constituição. Finalmente, embora a Constituição de 1988 não haja recuperado o advérbio “sempre” os intérpretes – inclusive o Supremo Tribunal Federal – voltaram a interpretar o § 3° do artigo 58 no sentido de que, subscrito por um terço dos membros da Casa Legislativa, o requerimento por si só é suficiente para criar o órgão investigador, dispensada a aprovação da maioria.

 

Atingido esse ponto, poder-se-ia pensar que estivesse aberto o caminho da plena investigação por parte da minoria. Estava-se esquecendo, no caso, o fato principal, ou seja, a luta do Executivo pela supremacia da sua autoridade.

 

Se não, veja-se. Assim que reconhecido o direito de a minoria (um terço dos membros do Legislativo) criar CPI, como reage o governo, que só muito raramente deixa de conseguir maioria, no processo eleitoral mesmo ou mediante cooptação subsequente? Como tudo o mais que se segue a criação de CPI depende, ate hoje, de atos a serem promovidos pela maioria dos membros da Casa Legislativa, é essa maioria, incrementada pelo governo, que assume as posições de mando e, pois, de direcionamento do inquérito instituído pela minoria. É ela, maioria governamental, que assume a presidência e a relatoria da CPI e, com isso, o domínio de toda a investigação parlamentar e das suas conclusões. Daí por diante, o interesse dessa maioria é que predomina sobre o interesse publico em que os fatos sejam apurados para correção dos rumos legislativos e/ou punição dos infratores, como diz a Constituição. Com isso, o interesse dessa maioria passa a selecionar entre fatos contrários e fatos favoráveis ao governo, para ficar exclusivamente com estes.

 

É o que têm noticiado os jornais a respeito da CPI da Petrobrás. Criada uma pela minoria do Senado Federal, a ela se seguiu imediatamente a criação de outra, mista (CPMI), criada pela maioria, para investigar o mesmo fato acrescido de outros mais, com a finalidade de atrair para o cenário das investigações fatos da responsabilidade de governos opositores, com vistas a trazer-lhes também desgaste político. Circunstância reveladora desde logo do intento da maioria governamental foi o fato de ela haver tornado para si, imediatamente, a presidência e a relatoria de ambas as investigações, com o que passou a dominá-las por completo. Fato corroborador desse claro desígnio foi a revelação da mídia, sempre atenta, de que os dirigentes da Petrobrás convocados para depor perante o órgão parlamentar de investigação atuaram com prévia ciência dos questionamentos a lhe serem feitos e das respostas esperadas, tudo de molde a prevenir possíveis incontinências e, pois, prejuízos políticos.

 

III. Função político-social da CPI.

 

A Constituição de 1988 prevê expressamente o poder de fiscalização e controle a ser exercido pelo Legislativo (artigo 49, inciso X), bem como o órgão que haverá especialmente de se incumbir do exercício desse poder (artigo 58, § 3°), conferindo-lhe para tanto “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”, que podem levar, por meio do Ministério Público, “à responsabilidade civil ou criminal dos infratores”.

 

Calha bem neste passo lembrar a observação de Montesquieu[4]: “A liberdade política só se encontra nos governos moderados. Mas ela nem sempre existe nos Estados moderados; só existe quando não se abusa do poder; mas trata-se de uma experiência eterna que todo homem que possui poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites. Quem diria! Até a virtude precisa de limites.” / “Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder.”

 

A certeira observação do sábio francês feita em 1747 repercutiu, em 1957, na do alemão Karl Loewenstein[5], para quem:

 

“El poder lleva em si mismo un estigma, y sólo los santos entre los detentadores del poder – y donde se pueden encontrar? – serian capaces de resistir a la tentación de abusar del poder.” l “El poder encierra en si mismo la semilla de su propia degeneración. Esto quiere decir que cuando no está limitado, el poder se transforma en tirania y en arbitrário despotismo.” l “El famoso – frecuentemente mal citado – epigrama de lord Acton hace patente de manera aguda el elemento patológico inherente a todo processo del poder: ‘Power tends to corrupt and absolute power tends to corrupt absolutely‘. El poder tiende a corromper y el poder absoluto tiende a corromperse absolutamente.”

 

É nesse contexto que se coloca a CPI, inegável instrumento de controle do poder estatal, e dos mais qualificados, não só porque a Constituição lhe dá poderes extraordinários de investigação atribuídos até ali apenas às autoridades judiciárias, mas também porque, sendo a CPI composta de representantes eleitos pela Sociedade, essa mesma Sociedade pode negar seu voto àquele desses representantes que faltou ao dever para com o interesse público, que outro não é senão o interesse dela própria, Sociedade.

 

Pois é preciso ter em mente que eleger representantes para conferir-lhes mandato político não basta. Faz-se necessário, mais, que a Sociedade atente para o exercício do mandato que conferiu ao eleito, a fim de que este não tome o poder como algo de que possa desfrutar segundo o seu interesse pessoal e não como instrumento de realização do interesse social em toda a sua expressão, que é, sim, a do Bem Comum.

 

Para tanto, urge dar ouvidos a advertência de Thomas Jefferson, de que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”, dando-se à expressão “liberdade” amplitude tal que comporte não apenas o sentido que lhe é próprio, mas que reúna em si os valores outros compreendidos no que se convencionou chamar de Bem Comum, que Miguel Reale definia argutamente como “bem de todos e de cada um”.

 

IV. Conclusões

 

(A) Da utilidade da CPI

 

Impõe-se, afinal, antes do mais, concluir sobre se é dado esperar desse instrumento de controle político – CPI – um melhor desempenho, tanto do ponto de vista da qualidade, quanto da regularidade e, ainda, se de algum modo e possível intervir em sua formatação para ainda maior eficácia das suas possibilidades.

 

Desde logo, considere-se que a propósito de qualquer instrumento – mecânico (um martelo), social (uma ONG) ou político (uma CPI) – desenhado ou concebido para cumprir certa função, é sempre dado avaliar sua capacidade de desempenho mercê especialmente de experimentações, feitas ou a se fazer.

 

Quanto a CPI, há exemplos de desempenho claramente aquém das expectativas da Sociedade. Um deles, recente, é o da Comissão “do Cachoeira”, em que sua eficácia foi de tal ordem que o primeiro relatório final, com alguns milhares de páginas, não conseguiu sequer a aprovação do plenário do órgão. Enfim, designado novo relator, este produziu um segundo relatório, de apenas um par de páginas, sem indicação de qualquer responsável pelos fatos, e foi aprovado!. Em chamada de primeira página, o jornal “O Estado de São Paulo”, de 19 de dezembro de 2012, noticiou, com um misto de frustração e ironia: “CPI do Cachoeira termina em acordo e sem indiciados.”

 

Outro exemplo, recentíssimo, é o da denominada CPI “da Petrobrás”. Criada no Senado Federal por iniciativa da minoria para apurar fatos relacionados com a aquisição pela Petrobrás de refinaria de petróleo em Pasadena, Estados Unidos, a maioria, imediatamente, criou uma CPMI no Congresso Nacional, com maior abrangência, no enganoso propósito de obstar o prosseguimento da CPI, no que foi impedida pelo Supremo Tribunal Federal, que mais uma vez proclamou o direito de a minoria criar CPI, sem que pudesse ser obstada. Então, a maioria deixou de subterfúgios e optou por embarcar nas duas – CPI e CPMI. E assim assumiu a presidência e a relatoria de ambas. Ali, as coisas passaram a correr segundo os interesses da maioria, até que o desfrute se mostrou exagerado. Isso porque a mídia passou a informar que personalidades ligadas à Petrobrás convocadas para depor nas investigações tiveram ciência prévia dos questionamentos que lhes seriam feitos e das respostas que delas se esperavam, para que tudo corresse de modo a evitar desempenhos inconvenientes.

 

Isso de uma parte, se bem que de outra existam exemplos de bom desempenho da CPI, que prestigiam o interesse público. Foi o caso da CPI “dos Correios”, cujas conclusões possibilitaram a descoberta do assim chamado “mensalão”, vale dizer, de numerosos casos de obtenção de apoio parlamentar às demandas políticas do governo em troca de relevantes quantias em dinheiro, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Penal 470, em que foram condenados nada menos do que vinte e cinco dos quarenta réus iniciais, políticos de alto coturno, empresários de relevo, profissionais liberais.

 

Em passado não muito distante houve ainda outros casos em que o interesse público foi contemplado nas investigações parlamentares, sendo de se citar as realizadas pela CPI “dos Anões do Orçamento”, por força da qual seis de dezoito parlamentares investigados tiveram seus mandatos cassados e quatro renunciaram antes.

 

É de se concluir, então, com bastante certeza, que a CPI/CPMI pode servir ao interesse público e até de modo ainda melhor, na medida em que lhe forem feitos alguns ajustes, como os seguintes:

 

(B) Do conflito entre os interesses.

 

De uma parte, a criação de CPI somente se legitima se e quando demonstrado o interesse público na investigação de determinado fato, significando isso dizer que o interesse na investigação é da Sociedade por inteiro, pois será ela a beneficiar-se com a remoção dos males que lhe vem causando aquele fato determinado. De outra parte, há de se ter presente que só é possível falar em direitos individuais a partir de quando o indivíduo humano passa a conviver, a viver em comum com outros indivíduos, repartindo com eles os benefícios dessa vida em sociedade.

 

Isso é de tal clareza que se mostra carente da mínima lógica a pretensão de o direito de um ou de alguns prevalecer diante do direito da Sociedade em que se vive. Mas, bem vistas as coisas, é o que tem ocorrido ao se admitir, como já se admitiu, que o particular convocado para depor na CPI possa não comparecer ou, comparecendo, possa recusar-se a depor ou, depondo, possa não obrigar-se a verdade dos fatos sobre os quais depõe.

 

Ora, nenhuma dessas situações pode prevalecer em face do interesse público presente no depoimento, no conhecimento dos fatos e na verdade a respeito deles. Ao contrário, há de se dar prevalência ao que se denomina “dever comunitário”, proclamado por Sérgio Resende de Barros[6] com vistas a lembrar a todos que se, de um lado, têm o direito de viver em Sociedade, têm, em contrapartida, o dever de se abster de qualquer ato que de algum modo possa prejudicar sua existência.

 

Nos Estados Unidos, por exemplo, onde a CPI corresponde a commitee of inquiry, não pode o particular convocado recusar-se a comparecer ou a depor sobre os fatos de que tem conhecimento nem faltar com a verdade a respeito deles. E isso consta expressamente do USCode, Seção193, onde se diz que “nenhuma testemunha tem o privilégio de se recusar a depor sobre qualquer fato, ou a produzir qualquer documento”, a cujo respeito venha a ser inquirida perante Comissão do Congresso ou de uma de suas Casas, “sob fundamento de que seu testemunho”…”pode causar-lhe desgraça ou alguma sorte de infâmia”.

 

A propósito, cumpre observar que isso tudo, antes de vigorar nos Estados Unidos da América, já vigorava na Inglaterra, cabendo então indagar: Por acaso, os Estados Unidos da América e a Inglaterra não vivem uma democracia? Por acaso, a democracia que lá se vive é inferior à que se vive aqui no Brasil? Por acaso, não se respeitam lá, diferentemente do que ocorre aqui, os direitos fundamentais da pessoa humana? Ao que se há de responder que na verdade o que ocorre aqui, sim, é verdadeiro desvio, pois que se está, aqui, acobertando alguém que, em nome do seu interesse particular, se está recusando a revelar a prática de atos seus ou de terceiros, que, se conhecidos, beneficiariam a Sociedade como um todo. Tem-se, pois, aqui em nosso país, a prevalência do interesse particular sobre o interesse público, o que sem duvida não tem sentido.

 

Exatamente por isso e que se impõe implantar, em texto constitucional ou regimental (v. artigo 58, § 3°, da CF), regra que imponha às testemunhas convocadas pela CPI o inafastável dever, primeiro, de comparecer; segundo, de efetivamente prestar depoimento e, terceiro, de o prestar com respeito à verdade. Não há por que admitir à testemunha ou que se negue a depor ou que simplesmente se cale ou que apenas afirme a disposição de depor perante algum magistrado. Onde fica a norma constitucional do artigo 58, § 3º, da Lei Maior, que confere à CPI poderes de investigação idênticos aos das autoridades judiciárias?

 

(C) Sobre o direito da minoria.

 

Se em verdade a minoria de um terço das Casas Legislativas a Constituição reconhece o direito a criação de CPI, como proclama reiteradamente o Supremo Tribunal Federal, cumpre dar-lhe efetividade pratica, reconhecendo-o não apenas como regra, mas como verdadeiro principio constitucional, que é ou deve ser. Em nome dele, impõe-se quebrar o poder ate agora demonstrado pela maioria governamental que, já se falou a respeito, toma para si a presidência e a relatoria da CPI criada pela minoria, impondo-lhe, em seguida, a direção das investigações e os termos do relatório final, que, sistematicamente, atendem aos interesses dessa mesma maioria e, por seu intermédio, aos do governo, e não, como convinha, ao interesse público, vale dizer, da Sociedade.

 

Em nome ainda desse mesmo interesse público, não faz sentido que o relatório final dos trabalhos da CPI constituída pela minoria tenha de passar pelo crivo da maioria para só depois alcançar o Ministério Público e, finalmente, a responsabilização civil e criminal dos infratores.

 

É preciso, ao contrário, que os procedimentos sejam alterados. Que à minoria, autora do requerimento de CPI, sejam asseguradas a presidência do órgão e a sua relatoria, bem como que o relatório por ela elaborado seja encaminhado ao Ministério Público independentemente de aprovação da maioria assegurando-se à maioria, paralelamente, o direito de também encaminhar o seu, se ele houver. E isso tudo porque, de qualquer modo, nenhum parecer obrigará o Ministério Publico, pois, ao contrario, a ele é que, sopesando o conteúdo do relatório (ou dos relatórios), caberá decidir pela proposição perante o Judiciário da medida cível ou criminal cabível, nos termos do já referido artigo 58, § 3º, da CF, para obter a responsabilização dos infratores.

 

(D) Sobre o número de partidos políticos

 

Poderá parecer desviada do foco principal deste trabalho a questão relativa ao número de partidos políticos existentes no País atualmente. É de se notar, contudo, que não apenas ao Direito Eleitoral, mas também ao Direito Parlamentar importa o número deles, tanto no que respeita ao desempenho das Casas Legislativas como um todo, quanto naquilo que pertine especificamente à CPI.

 

É certo que assembleia política (Câmara dos Deputados e Senado Federal, na União; Assembleia Legislativa, nos Estados; Câmara Distrital, no Distrito Federal; e Câmara de Vereadores, nos Municípios) vem a ser reunião de representantes da Sociedade; que, para representa-la, tais representantes tiveram de filiar-se a determinado partido político, e o fizeram por reconhecer em tal partido semelhança de opinião política entre as suas e as dele; que, afinal, foram eleitos porque entre eles e os eleitores ocorreu o mesmo reconhecimento de opinião política. Logo, poder-se-ia concluir que a democracia, governo do povo pelo povo, mais se fortaleceria quanto mais se viabilizasse a multiplicidade de opinião política e, pois, de partidos políticos.

 

Esse raciocínio, que à primeira vista se mostra sedutor, acaba por revelar-se profundamente individualista e, por isso, prejudicial a própria Sociedade, na medida, aliás, em que se mostra contraditório com ela mesma. Isso porque, se a Sociedade é tal por reunir em si muitos indivíduos, ela e tais indivíduos na realidade não se identificam, não são uma e mesma coisa, não podendo e não devendo, pois, ser confundido o que convém ao indivíduo com o que convém à Sociedade. Ao contrário, coisas diversas que são, cumpre dar-lhes tratamento diverso, na medida mesma dessa diversidade. A esse propósito, como em tudo o mais que pertine a vida prática, há de se ter em vista o principio da moderação, que por tantas maneiras se manifesta: “nada em excesso” (meden ágan); “haja moderação nas coisas” (est modus in rebus), “a virtude está no meio” (in médio virtus), tudo traduzido pela sabedoria popular na expressão “nem tanto ao mar, nem tanto a terra”.

 

De fato, levado às últimas consequências, o raciocínio acima aporta necessariamente num impasse. À sua luz, o bom, o ótimo é que haja a maior diversidade possível de opiniões a respeito do mesmo objeto. Daí o prestígio da democracia direta em que as pessoas do povo se reuniam em praça pública para discutir e decidir sobre os problemas da pólis. Ora, isso teve seu tempo quando o território e a população da polís eram menores, assim como seus problemas em menor número e complexidade. Hoje, não há mais condições de as pessoas tratarem pessoalmente das questões que afligem a sua cidade, o seu estado, o seu país e, pari passu, cuidar também dos negócios que atormentam suas vidas particulares. Talvez isso nem mesmo se viabilize com a ajuda da Cibernética ou da Informática. Porque o de que se trata é de tempo, a respeito do qual se já se fez possível dar-lhe melhor aproveitamento, contudo ainda não foi possível dilatá-lo. E é realmente de mais tempo que se necessitaria. Donde ser viável concluir que a democracia representativa, exercida por meio de representantes eleitos, se não para sempre, ao menos por mais algum tempo será a única possível. E, certamente, impõe-se melhorá-la, livrando-a, tanto quanto possível, dos seus problemas, primeiro, daqueles mais visíveis.

 

Dentre eles, inegavelmente, situa-se o da desmedida proliferação de partidos políticos, o que é preciso equacionar e resolver. Isso porque, se de um lado, à democracia é preciso haver diversidade de opiniões para melhor conhecer da questão a decidir, de outro lado, à democracia é necessário haver também identidade de opiniões, para que se forme a maioria que, por sua vez, decida a respeito dessa questão em debate.

 

Sem dúvida, para justificar sua existência, a cada um dos partidos há de corresponder alguma originalidade no trato das questões políticas e clara disposição de pugnar pela sua adoção na prática, a fim de que não simplesmente se criem partidos como novo espaço político para comportar novos agentes. Não. A criação de partidos políticos deveria ser mais bem examinada e decidida, devido exatamente à essencialidade de seu posicionamento no sistema eleitoral previsto na Constituição.

 

Nesse sentido, à Justiça Eleitoral deveria caber atuação mais rigorosa no tocante a aprovar, ou não, o programa do partido a ser criado. Para tanto, há de haver manifestação prévia do Ministério Público, assim como dos partidos já existentes. Ademais, num primeiro passo, a aprovação da Justiça Eleitoral deveria ser apenas provisória, sendo que a aprovação definitiva só deveria ocorrer após a participação do partido nos dois pleitos eleitorais seguintes, nos quais obtivesse resultado indicativo de aceitação eleitoral de certa expressão, compatível com a importância de um partido político. Resultado esse que, ademais, deveria prestar-se a situá-lo em tal ou qual posicionamento no tocante à sua participação nas disponibilizações promovidas pelo poder publico, tais como fundos partidários, tempo de televisão, e assim por diante.

 

Seria preciso, também, exigir dos partidos políticos rigorosa observância de princípios éticos a eles aplicáveis, apenando-se o seu descumprimento, apurado em processo regular, com a suspensão temporária das atividades ou, nos casos de major gravidade, com a extinção do partido infrator, assim como com a suspensão temporária de direitos políticos dos seus dirigentes. Tudo, sem dúvida, em nome da essencialidade do partido no sistema político previsto na Constituição. Calha bem, neste passo, dar ouvidos ao eminente José Luis L. Aranguren: “A moralização social tem que efetuar-se, ao mesmo tempo, através de um modo pessoal e de um modo institucional. Renunciar a função ético-pessoal na moralidade social seria desconhecer que a ética inteira e primariamente pessoal, que os atos e as virtudes, os deveres e os sentimentos morais, a consciência e a responsabilidade concernem às únicas pessoas realmente existentes, que são as individuais. Mas as pessoas individuais são impotentes frente ao Leviatã do Estado e frente aos poderosos grupos de pressão que se acham detrás dele; por isso a moralidade tem que inscrever-se na estrutura mesma do aparato político-social, institucionalizada até onde se possa.”[7]

 

As palavras acima possuem tanta maior pertinência ao nosso país, quanto, infelizmente, mais próximas estão no tempo as noticias a darem conta do que se passa entre partidos políticos e governos, estes e aqueles voltados mais a seus próprios interesses do que ao interesse público, da Sociedade que, confiando neles, os elegeu.

 

Necessário, imprescindível, sem dúvida, impor limites que impeçam a proliferação demasiada dos partidos políticos, pois, do ponto de vista democrático, é viciosa tanto a situação de partido único, como no caso da ex­-URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), quanto a pulverização de partidos políticos, qual ocorre hoje no País. Situação como a atual, de partidos políticos em número superior a três dezenas, revela-se por si só viciosa no piano eleitoral, inviabilizando praticamente a formação desde logo de maiorias convincentes e convencidas. Mas também se revela viciosa no âmbito parlamentar, nas atuacties do Plenário das Casas Legislativas, onde se discutem e votam as leis, ou da CPI, onde se fazem as investigacties que ensejam o controle do exercício do Poder estatal, tão necessário ao bom desenvolvimento da Democracia.

 

[1]V. Andyara Klopstock Sproesser, “A Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI no Direito Constitucional Brasileiro”, p.159 e seguintes.

 

[2] V. idem, op. cit., p.165 e seguintes.

 

[3] V. idem, op. cit., p.171 e seguintes.

 

[4] “Do Espírito das Leis”, Primeira Parte, Livro Décimo Primeiro, Capitulo IV, p. 166, tradução de Cristina Murachco, Editora Martins Fontes, 2000.

 

[5] “Teoria de la Constitucion”, traduclo de Alfredo Gallego Anabitarte, Ediciones Ariel, Barcelona, 1965, p. 28

 

[6] “Direitos Humanos — Paradoxo da Civilização”, Belo Horizonte, Del Rey, p.15.

 

[7] “Ética e Política” Duas Cidades, tradução de Wanda Figueiredo, 1967, p.210.

 

 

 

 

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