Publicado no jornal O Estado de S. Paulo

Por Thiago Soares, especialista da área cível do Cunha Ferraz Advogados

 

Em meio à pandemia por Coronavírus instalada no Brasil e no mundo, não se discute mais sobre seus impactos na saúde. A relevância do isolamento social para conter a velocidade de propagação, infecção e hospitalização dos doentes com agravamento dos sintomas provocados pela COVID-19 é uma realidade irrefutável e que se não adotada em tempo, poderá levar a morte de milhões de pessoas.

 

Os impactos dessa pandemia podem ser sentidos também em outras áreas, como a econômica e a jurídica. Seus efeitos sobre a economia podem ser classificados como uma “ameaça sem precedentes para a economia mundial”, como afirmou a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), estimando, inclusive, que ela leve muito mais tempo do que o previsto para se recuperar. 

 

Já na economia brasileira, as implicações dessa pandemia não poderiam ser diferentes do resto do mundo. O cenário é de recessão. Afora as dificuldades internas próprias do país, o enfrentamento da COVID-19 pelo isolamento social promove significativa alteração na rotina de indivíduos, famílias, comunidades e organizações. 

 

Cadeias de distribuições estão sendo afetadas pelo enfraquecimento da demanda por bens de consumo e de produção; atividades tidas como não essenciais são obrigadas a manter as portas fechadas; a drástica redução no faturamento pela diminuição da circulação de pessoas, além do aumento preços de produtos e de serviços, afetando até mesmo o setor do turismo, impactando diretamente o bem-estar da população.

 

Do ponto de vista jurídico, o cenário é contingenciado em todas as áreas do direito, desde as relações trabalhistas, passando pelas relações fiscais e afetando os contratos administrativos, inclusive. No plano das relações particulares, essa pandemia seria o exemplo clássico de evento de força maior para, em determinados casos, subtrair a responsabilidade dos devedores por eventuais prejuízos causados pelo descumprimento do contrato, como prevê o art. 393 do Código Civil.Em síntese, entende-se por caso fortuito ou força maior a ocorrência de um fato imprevisível, cuja inevitabilidade impeça a execução específica do contrato. 

 

Mas é nas relações de consumo que ela aparenta promover um verdadeiro caos. Primeiro porque essa pandemia já demonstrou a fragilidade das relações consumeristas, desequilibradas, agora, pela ausência de regulação sobre a influência de um evento de força maior sobre os contratos firmados nas relações de consumo, especialmente quando estes envolverem prestações ainda não cumpridas. Não há uma resposta clara para o que aconteceria com os contratos de consumo quando eventos imprevisíveis e extraordinários atuem sobre a execução específica deles. Segundo, porque ela não trata sobre as hipóteses em que o fornecedor fica impedido de entregar o produto final ao consumidor por atos editados pelo Poder Público.

 

O Código de Defesa do Consumidor, fundado na teoria do risco da atividade, estabeleceu a responsabilidade civil objetiva aos fornecedores em geral, isto é, ressalvados os casos de comprovada inexistência de defeito do produto ou serviço ou provada a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro, o fornecedor será responsabilizado sempre que o serviço ou produto provocar um dano ao consumidor, independentemente de culpa (conduta negligente, imprudente ou inepta). 

 

Além disso, a norma consumerista permite ao consumidor exigir o cumprimento forçado da obrigação contratual; aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente; ou rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, acrescida de correção monetária e perdas e danos caso o fornecedor se recuse ao cumprimento do contrato ou da oferta (CDC, art. 39).

 

Dentre as inúmeras situações decorrentes das relações de consumo, existem casos de cancelamento de shows e eventos ao público em geral; de suspensão de aulas presenciais pelas instituições de ensino e de interrupção de obras por empreiteiras e incorporadoras, tudo em decorrência das determinações do Poder Público para conter o avanço da pandemia por Coronavírus. Essas e outras situações não significam uma recusa proposital do contrato por parte do fornecedor, muito menos estão inseridas dentre as excludentes de responsabilidades previstas no Código de Defesa do Consumidor.

 

Observe-se que, nesses casos, nem mesmo a tutela específica ou a adoção de providencias que assegurem o cumprimento da obrigação ou o resultado prático pretendido (CDC, art. 84), poderiam ser determinadas, porquanto violaria as medidas implementadas pelos governos para conter o avanço da pandemia e colocaria em risco a saúde da população. 

 

Apesar de existirem argumentos favoráveis ao consumidor, isto é, que militam em favor da responsabilização do fornecedor pelos prejuízos causados por esses cancelamentos como o dever do fornecedor zelar pela proteção da vida e da saúde do consumidor (CDC, art. 6º I) e o direito à modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas (CDC, art. 6º, V), bem como o respeito a essas medidas estar inserido entre as medidas de política nacional das relações de consumo (CDC, art. 4º), elas não podem ser aplicadas aos casos em que o descumprimento decorre das medidas de contenção da expansão da pandemia.

 

O cancelamento de shows e eventos, a suspensão de aulas presenciais, a interrupção de obras não essenciais, nesse caso,fogem ao fortuito interno e, por isso, não se enquadram na impossibilidade de cumprimento por culpa do devedor. Como dito, essa é a clássica hipótese de impossibilidade por caso fortuito ou de força maior (CC, art. 393). Sua ocorrência é incerta e atinge inteiramente os dois lados da relação jurídica de consumo: o do fornecedor que não consegue entregar o que prometeu ao consumidor e o consumidor que, por sua vez teve frustrada a expectativa de ter aquele produto ou serviço.

 

A solução para questões como estas, diante da lacuna legal, como forma de adequar os interesses de ambas as partes passaria, num primeiro momento pela boa-fé (CDC, art. 4º, III e CC. art. 421), que deve regular o comportamento das partes em sociedade, permitindo que as partes cheguem a um consenso sobre o cumprimento da obrigação e, em ultima análise, na hipótese de judicialização da questão, pela aplicação do dialogo das fontes, expressamente prevista no art. 7º do CDC, que permite a integração das normas, o que permitiria a aplicação das disposições do Código Civil relativas à teoria da imprevisão (caso fortuito ou força maior) a excluir a responsabilidade do fornecedor pelo descumprimento do contrato ou permitiria a revisão do contrato a fim de restaurar o equilíbrio, de forma equitativa, do contrato.

 

Por ora, diante da incerteza dos desdobramentos da pandemia, a sugestão é de cautela e de procurar meios de adequar os interesses das partes a permitir o cumprimento de todas as obrigações possíveis, inclusive pela renegociação de prazos, pagamentos e restituições, se o caso e, de preferência à distância, em atendimento ao dever de isolamento social.