Ao mesmo tempo em que percebemos o quanto é indiscutível que o desenvolvimento de novos recursos tecnológicos, especialmente dos smartphones e da transmissão de dados sem fio que possibilitaram e até intensificaram as comunicações através da internet, permitindo ao usuário a realização de diversas operações, avançam as polêmicas jurídicas que repercutem sobre o acervo digital formado pelo usuário, de modo que o debate sobre a partilha desses “bens” no Direito das Sucessões, tem se mostrado cada vez mais relevante.

 

Entende-se por acervo digital todo e qualquer bem digital, material e imaterial da pessoa guardado em ambiente digital, que podem ser classificados em dois grupos: os de valoração econômica, como músicas, poemas, textos, fotos de autoria da própria pessoa, criptomoedas, dentre outros; e os que não têm qualquer valor econômico, e geralmente não integram categoria de interesse sucessório. Quanto aos primeiros, não há dúvidas de que eles podem – e devem – ser objeto de sucessão, porquanto há neles embutido um determinado valor material.

 

Contudo, o desafio a ser enfrentado é afirmar se aqueles bens sem conteúdo econômico e que compõe o acervo digital, ou seja, conversas particulares, fotografias digitalizadas, dentre outros, e que na grande parte das vezes sempre envolvem uma terceira pessoa, podem ser objeto de sucessão.

 

O questionamento acima nos remete, obrigatoriamente, a visitar o conceito de “sucessão” causa mortis que, de modo geral é traduzido como a situação na qual o herdeiro assume o lugar do falecido, substituindo-o na titularidade de determinados bens. A seu turno, a herança significa o conjunto de bens formado com o falecimento do de cujus; constituindo o espólio e configurando uma universalidade jurídica, criada por ficção legal e alçada a status de garantia constitucional.

 

Em outras palavras, a herança engloba num só monte o patrimônio material e imaterial do falecido, incluídos nesta última categoria, aqueles que supostamente seriam havidos e construídos durante a vida da pessoa na rede mundial de computadores.

 

Mesmo assim, para todos os efeitos, a herança é um todo indivisível e, por força do art. 80, II do Código Civil, é considerada como bem imóvel, mesmo que seja composta apenas por bens móveis, caso de dinheiro e veículos ou incorpóreos, como o acervo musical, biblioteca de livros digitais, poemas, textos, fotos de autoria da própria pessoa, etc. Essa massa de bens, segundo a regra do art. 1.791 do Código Civil, é transmitida como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros.

 

A leitura rápida dessas disposições, até por força do próprio art. 1.791 do Código Civil demonstra, num primeiro momento, que todo o patrimônio, inclusive aquele que forma o acervo digital, seria passível da sucessão legítima. A confusão está criada, pois como já dito, mesmo que a herança, nos termos do citado artigo, possa ser composta por bens corpóreos ou incorpóreos, permanece a dúvida se, nesses casos, o legado digital do falecido, mantido sob chaves e senhas, pode ser disponibilizado e transferido aos herdeiros, mesmo que, dentre eles, existam dados e informações de terceiros.

 

De fato, dentro desse acervo digital do falecido podem existir objetos que caracterizam a projeção da privacidade e, sem que exista a declaração expressa de vontade do seu titular, autorizando algum herdeiro ou terceiro a acessá-lo e geri-lo, não poderiam ser transmitidos. Além disso, pode haver casos em que terceiros que interagiram com o falecido em vida tenham suas privacidades expostas aos herdeiros.

 

Passa a existir, com isso, o conflito entre a legitimação sucessória do material que é construído em vida pela pessoa na internet e a tutela da privacidade, da imagem e de outros direitos da personalidade do falecido e de terceiros. E como a legislação vigente é omissa nesse sentido, o tema, como não poderia deixar de ser, já ganhou a esfera judicial, que tem enfrentado a forma legal de dirimir a dúvida.

 

A recente decisão proferida pelo Poder Judiciário do Estado do Minas Gerais, julgando improcedente a pretensão de uma mãe de ter acesso à uma determinada conta virtual da filha falecida, aponta o sentido de impedir a sucessão de parte desse acervo digital.

 

Com efeito, sob o fundamento de os dados pessoais do titular da conta serem invioláveis, nos termos do art.5º, XII, da Constituição Federal, aquela Corte entendeu que o acesso a sua conta digital permitiria não só o acesso aos dados da falecida, como também de terceiros com os quais mantinha contato, o que acarretaria em indevida invasão da privacidade de outrem[1].

 

Há que se ter em mente que o acesso a esse material está vinculado a uma chave e senha, fato que seria um indicativo de privacidade e, na medida em que não se faça a distinção daquilo que pode e daquilo que não pode ser transmitido desse acervo, estar-se-ia acessando e transmitindo direitos essenciais e personalíssimos do falecido, que não são objetos de herança e devem ser imediatamente extintos com o falecimento.

 

Algumas empresas de mídias digitais, tem permitido aos seus usuários optarem por transferir administrativamente a conta do falecido aos seus parentes mediante a comprovação do óbito. Contudo, não concordamos com a hipótese de transferência sem que haja a autorização deixada pelo falecido. Obviamente, não entrariam ai, os casos de exceção, como no caso de estado de necessidade, ou seja, no desaparecimento da pessoa, sequestro e/ou situações correlatas e mesmo assim, com a observância de determinação judicial e com indícios de prova da ocorrência de qualquer dessas situações.

 

Posto isso, antes de se deferir a sucessão, ou seja, a transferência do acervo virtual sem autorização deixada pelo morto, entendemos pela necessidade de se diferenciar aquilo que se refere a intimidade da vida privada da pessoa humana, do falecido ou de terceiros, daquilo que, de fato, possui conteúdo econômico e pode ser explorado. Os dados digitais que dizem respeito à privacidade e à intimidade da pessoa, como dito, devem desaparecer com ela.

 

Assim, enquanto não exista regulamentação específica sobre a herança digital e a fim de evitar a colisão entre o direito à privacidade do falecido e eventualmente de terceiro com a garantia da herança, o planejamento sucessório por meio de testamento ou de autorização conferida aos familiares ou terceiros para gerenciar o acervo digital, se mostra como a única opção, cabendo ao Poder Judiciário intervir, pontualmente, em cada caso, aplicando a regra da ponderação na solução de eventuais conflitos desses direitos assegurados constitucionalmente.

 

 [1] TJMG, Processo nº 0023375-92.2017.8.13.0520, Vara Única da Comarca de Pompeu/MG.