A realidade das famílias brasileiras já não é a mesma de antes. É cada vez maior o número de divórcios ⊃1;, principalmente de casais com filhos. Na mesma intensidade que isso ocorre, os pais e mães divorciados, mesmo com filhos pequenos, não tardam em contrair novos relacionamentos, gerando intenso vínculo afetivo e fraternal entre as crianças e os novos parentes.

 

Isso contribuiu para ampliar o conceito de família, que hoje não se baseia apenas nos laços sanguíneos entre os pais e os filhos. Agora, além da ligação biológica, há a ligação afetiva. Essa nova realidade passou a permitir o reconhecimento de filhos unicamente pelo vínculo de afinidade, ou seja, em decorrência do afeto e do amor construído entre eles. Esses são os chamados filhos socioafetivos.

 

Com a possibilidade do reconhecimento da parentalidade socioafetiva sem afastar o parentesco biológico, surge a multiparentalidade, isto é, a coexistência de pais biológicos e pais socioafetivos, de forma que as crianças e adolescentes passam a ter mais de 2 pais ⊃2;.

 

A ausência de regulamentação legal sobre a multiparentalidade, fez com que o Judiciário se pronuncie sobre cada caso particular a fim de garantir a proteção da paternidade socioafetiva e da multiparentalidade nos casos a ele submetido.

 

Em decisão de vanguarda, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário nº 898.060/SC, privilegiando a multiparentalidade, decidiu que, o reconhecimento da paternidade socioafetiva pode conviver simultaneamente com a paternidade biológica, ou seja, não há óbice para que a pessoa tenha dois pais.

 

Diante da realidade dessas situações cada vez mais presente, em novembro de 2017, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu o provimento nº 63, regulamentando a questão. A norma traz a possibilidade de se reconhecer o filho socioafetivo sem a intervenção do judiciário, ou seja, a paternidade socioafetiva poderá ocorrer de forma espontânea e diretamente nos cartórios de registro civil. O provimento também garante a informação, no assento do nascimento, de até dois pais e de duas mães ⊃3;, determinando, expressamente, que o reconhecimento espontâneo não obstaculiza a discussão judicial sobre a verdade biológica ?, regulando, assim, a existência de famílias multiparentais.

 

Do reconhecimento da filiação socioafetiva e das famílias multiparentais decorrem diversos desdobramentos jurídicos, dentre os quais, o direito do filho socioafetivo participar da sucessão, além das questões ordinárias que derivam do poder familiar, como por exemplo, o dever de assistir, de educar, de criar e de propiciar a saúde, previstos nos arts. 227 e 229 da Constituição Federal e no art. 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente e, principalmente aquele que causa grandes debates judiciais: o dever de prestar alimentos.

 

Essa multiparentalidade faz surgir uma série de conflitos entre todos os pais acerca do dever de prestar alimentos. A dúvida não se resume apenas a hipótese de o alimentado morar com um dos pais socioafetivo, ela vai além e abrange situações inusitadas. É a partir daí que acontecem os questionamentos judiciais sobre a prestação de alimentos: é dever apenas dos pais biológicos, dos afetivos, ou de todos?

 

Por regra, não existe hierarquia entre os pais biológicos e socioafetivos ? na família multiparental. O Código Civil prevê, no art. 1.696, que o dever de prestar alimento aos filhos é solidário entre os pais. Assim, fazendo uma interpretação extensiva ao dispositivo em referência, suprimindo a ausência de lei regulamentando o tema, para os casos em que seja reconhecida a família multiparental, o dever de prestar alimentos passa a ser extensivo tanto aos pais biológicos, como aos socioafetivos, independente da quantidade de pais e mães que o alimentado possua.

 

Sob a perspectiva do poder familiar, que, na família multiparental também é exercido tanto pelos pais biológicos quanto socioafetivos, a conclusão que se chega é a mesma, ou seja, todos os pais têm o dever de prestar alimentos aos filhos, conforme prevê o parágrafo único do art. 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

Desse modo, a obrigação alimentícia é estendida a todos equitativamente, cujo arbitramento, deverá seguir os ditames já estabelecidos pela lei, ou seja, ser arbitrado conforme o caso, observando-se o binômio da necessidade/possibilidade, de forma que todos os pais se responsabilizem pelos gastos e necessidades do filho necessitado.

 

O inverso é igualmente verdadeiro, ou seja, o filho socioafetivo concorrerá com o biológico na obrigação de prestar alimentos àquele que assim o reconheceu, aliás, como o dever de prestar alimentos é recíproco entre pais e filhos, estes, havendo necessidade, deverão prestar alimentos tanto aos pais socioafetivos como aos biológicos sob o mesmo binômio, necessidade/possibilidade.

 

[1] De acordo com pesquisa Estatística do Registro Civil 2016, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada em 14.11.2017

 

[2]  STF, RE 898.060/SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, j. 21.09.2016, publicado no seu Informativo n. 840. Repercussão Geral nº 622.

 

[3] Art. 14 – O reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais e de duas mães no campo FILIAÇÃO no assento de nascimento.

 

[4]  Art. 15 – O reconhecimento espontâneo da paternidade ou maternidade socioafetiva não obstaculizará a discussão judicial sobre a verdade biológica.

 

[5] Cf. TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v. 5: Direito de Família. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017 [ebook] p. 267

 

 

 

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