A desconsideração da personalidade jurídica é uma questão bastante delicada e controvertida no direito brasileiro, tanto que, recentemente, o instituto sofreu alterações inseridas pela Medida Provisória nº 881/2019 – ainda não convertida em lei – na tentativa de diminuir uma imaginada discricionariedade do julgador. Para melhor abordar a questão, há que se partir da ideia de que ela a desconsideração da personalidade jurídica foi concebida para relativizar a personificação da pessoa jurídica, desenvolvida juridicamente como uma benesse estatal para propiciar aos empreendedores meios para atingirem determinados objetivos sem que, para isso, tenham de arriscar todo seu patrimônio.

 

Em outras palavras, a desconsideração da personalidade jurídica pode ser compreendida como ato de mitigação da segregação patrimonial da pessoa jurídica em relação à pessoa física dos seus membros, permitindo que os efeitos de certas e determinadas obrigações, inicialmente da pessoa jurídica, possam alcançar os seus sócios.

 

Se de um lado, a constituição da sociedade e a teoria da pessoa jurídica representam avançada técnica para consecução de objetivos econômicos, sociais, religiosos e/ou políticos, de outro a sua manutenção somente se justifica enquanto estiver voltada para a realização daqueles específicos interesses e objetivos empresariais, não sendo permitida a sua utilização como forma de burlar as normas jurídicas vigentes. Nesse cenário, excepcionalmente, a lei permite ao juiz penetrar o véu da personalidade para coibir os abusos ou condenar a fraude praticados através do uso da pessoa jurídica, estendendo-se aos sócios a responsabilização por esses atos fraudulentos.

 

Esse abuso da pessoa jurídica para fraudar os credores, subtrair-se a uma obrigação já existente, desviar a aplicação de uma lei, constituir ou conservar um monopólio, etc., pode ocorrer de várias formas. Daí dizer que não seria lógico limitar-se a possibilidade de se requerer a desconsideração da personalidade jurídica. Isso significa dizer que, cada vez que se identifique uma nova circunstância fática na qual se evidencie o desvio de finalidade da pessoa jurídica ou a confusão patrimonial dela com a de seus sócios com o objetivo de prejudicar credores ou praticar atos ilícitos de qualquer natureza, é possível requerer ao Poder Judiciário a desconsideração da personalidade jurídica daquela pessoa jurídica, sem que isso signifique em ofensa à preclusão.

 

Por mais que a preclusão consista na perda da faculdade de praticar um ato processual, seja porque já foi exercida aquela faculdade no momento processual oportuno, seja porque a parte deixou passar a fase processual sem fazer o uso do seu direito, ou ainda que impeça o Juízo de decidir sobre questão já examinada, o que possui relevância, portanto, para a desconsideração da personalidade jurídica é a causa, ou melhor, são as situações de fato que motivam o pedido.

 

Em recente decisão, o STJ reconheceu a possibilidade de se deduzir novo pedido de desconsideração da personalidade jurídica quando o contexto fático for diferente daquele anteriormente deduzido e não admitido ou indeferido, sem que isso caracterize violação à preclusão.

 

A linha de pensar da mencionada decisão foi no sentido de que não se pode confundir, como tem acontecido, a figura da desconsideração da personalidade como o direito substantivo perseguido. A desconsideração, ainda que seja instituto de direito material, é um meio de estender a responsabilidade da pessoa jurídica para seus sócios, que será concedido na medida em que as circunstâncias fáticas evidenciarem a utilização da pessoa jurídica para fraudar credores ou praticar ilícitos.

 

Na prática, essa decisão abre novos horizontes para os credores que, desconfiados da utilização abusiva da pessoa jurídica, possam reunir novos elementos para uma nova tentativa de alcançar a responsabilização dos sócios. Numa síntese, sobrevindo pedido de desconsideração com esteio em circunstâncias distintas, até então não apreciadas, permitirá ao credor levar tal situação ao Poder Judiciário para que ele se debruce sobre os novos fatos e decida se naquela circunstância teria ou não ocorrido o abuso da pessoa jurídica a atrair a desconsideração da personalidade jurídica.

 

Essa decisão é um divisor de águas, pois começa a dirimir as divergências que até então existiam sobre a possibilidade de se deduzir mais de um pedido de desconsideração da personalidade, distintos um do outro, e fará com que as instâncias inferiores os examinem com maior critério.

 

Os credores sagraram-se vitoriosos por tabela, ganhando um folego na tentativa de mitigar os prejuízos decorrentes daqueles que se escondem atrás do véu da pessoa jurídica para prejudicar terceiros e cometer crimes.

 

A decisão reforça ainda mais o viés do STJ, de relativizar cada vez mais direitos como a autonomia patrimonial da pessoa jurídica que, num passado, era considerado absoluto, diminuindo os espaços para quem pretendia ou ainda pretende, de alguma forma, burlar as normas jurídicas vigentes.

 

 

 

 

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